Pular para o conteúdo principal

A Cruz ou o Cetro? Uma reflexão sobre a fé e o poder

Amigos e leitores,

Tenho observado com um coração pastoralmente preocupado uma ideia que tem ganhado força em alguns círculos cristãos. É a crença de que a nossa missão como Igreja é tomar o controle da sociedade, impor leis de inspiração bíblica e construir o Reino de Deus através do poder político. Essa visão, conhecida como Teologia do Domínio, muitas vezes nasce de um desejo sincero de ver um mundo mais justo e alinhado aos valores de Deus.

Mas, ao examinar essa ideia com mais calma, à luz do Evangelho, eu me sinto compelido a fazer uma pergunta difícil: será que esse caminho reflete o coração de Cristo?

Voltando à primeira página da Bíblia

Muitas vezes, essa teologia se baseia na palavra “dominar”, que encontramos lá em Gênesis, quando Deus cria a humanidade. Mas o que essa palavra realmente significa?

Quando olhamos para o hebraico original e para o restante da história da criação, vemos que “dominar” não significava esmagar, conquistar ou explorar. A palavra carrega a ideia de cuidar com responsabilidade. Deus nos chamou para sermos os jardineiros de Sua criação, não seus tiranos. Para sermos mordomos fiéis, não donos absolutos. A tarefa era “cultivar e guardar” o jardim, uma imagem de cuidado e proteção, não de opressão.

A inversão perigosa do Evangelho

E aqui está o meu maior receio: essa teologia do domínio, ao meu ver, inverte o símbolo central da nossa fé.

O Evangelho de Jesus Cristo nos aponta para a Cruz — um lugar de fraqueza, de serviço, de amor sacrificial. É o poder de Deus se aperfeiçoando na nossa fragilidade (2Co 12.9). É o Reino que não vem pela força, mas pelo Espírito (Zc 4.6).

Já a teologia do domínio nos aponta para o Cetro — um símbolo de poder temporal, de controle, de força política. Ela nos tenta a trocar a fraqueza da cruz pela força do palácio.

Uma perspectiva da minha tradição luterana

Na teologia luterana aprendemos com Martinho Lutero sobre a doutrina dos “dois reinos”. É uma forma de entender como Deus governa o mundo. Ele atua de duas maneiras distintas:

  1. Com a sua mão direita, Ele governa o reino espiritual através do Evangelho, da Palavra, alcançando e transformando os corações na Igreja.

  2. Com a sua mão esquerda, Ele governa o reino secular através das leis e das autoridades civis, para manter a ordem e a paz na sociedade.

A Igreja não foi chamada para empunhar a espada do governo, mas para proclamar a Palavra que liberta as almas. Tentar fundir os dois reinos, impondo a fé cristã através da lei do Estado, é uma confusão perigosa que a história já provou ser desastrosa, violando a liberdade de consciência que o próprio Deus nos deu.

Isso nos leva à nossa verdadeira forma de “domínio” no mundo: a vocação. Onde o cristão exerce sua influência? Em seu chamado diário. Nós “dominamos” ao amar nossa família com fidelidade, ao sermos éticos e excelentes em nosso trabalho, ao servir nossa comunidade com compaixão, ao cuidar da criação de Deus. É no serviço humilde do dia a dia, e não na tomada de poder político, que o Reino de Deus se torna visível através de nós.

Nosso verdadeiro chamado

Então, a teologia do domínio é cristã? Com o coração pesado, creio que ela troca a essência do Evangelho por uma busca de poder que o próprio Cristo rejeitou quando Satanás Lhe ofereceu todos os reinos do mundo no deserto.

Nossa missão não é construir uma nação cristã pela força, mas ser uma presença fiel do Reino em todas as nações. Ser sal e luz. Ser uma cidade sobre o monte, cuja beleza não está em seu poderio militar ou político, mas no amor, na justiça e na graça vividos por seus cidadãos.

Com carinho, 

Marlon Anezi


Este é um tema complexo que mexe com a nossa fé e a nossa política. Se esta reflexão te ajudou a pensar, salve-a. E eu adoraria saber, nos comentários: como podemos ser cidadãos fiéis no mundo e, ao mesmo tempo, mantermos o foco na Cruz de Cristo e não no cetro do poder?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os óculos que mudam a forma como vemos o mundo

Você já tentou explicar algo da sua fé para um amigo e sentiu que ele simplesmente... não entendeu? Não por maldade, mas como se vocês estivessem falando línguas diferentes, operando em frequências distintas. O apóstolo Paulo nos ajuda a entender essa dificuldade. Ele fala de duas maneiras de perceber a realidade: a do “homem natural” e a do “homem espiritual”. O “homem natural” é aquele que opera apenas com a razão humana, com a lógica do que se pode ver, tocar e medir. Para essa perspectiva, as coisas de Deus — a cruz, a ressurreição, a graça — soam como “loucura” (1 Coríntios 2.14). Não é que a pessoa seja menos inteligente; é que ela está tentando ler um livro divino sem a ajuda do seu Autor. E aqui está a grande verdade: a Palavra de Deus precisa do seu verdadeiro Intérprete para ser compreendida. E o seu Intérprete é o próprio Autor: o Espírito Santo. Sem a Sua luz em nossa mente e em nosso coração, as Escrituras podem parecer apenas um conjunto de regras, histórias e ideias. C...

Afinal, o que é aconselhamento cristão?

Vamos ser sinceros: a expressão “aconselhamento cristão” pode ser um pouco confusa, não é mesmo? Para alguns, soa como uma conversa com o pastor. Para outros, parece uma terapia com oração no final. Há quem pense que é um estudo bíblico focado nos seus problemas. A verdade é que essa confusão é normal, porque o aconselhamento cristão se parece um pouco com tudo isso, mas não é exatamente nenhuma dessas coisas. Eu percebi que a melhor forma de entender o que ele é , é primeiro esclarecer algumas coisas que ele não é . Então, vamos pensar juntos sobre isso? 1. É a mesma coisa que o pastor faz? Sim e não. O que o seu pastor faz ao visitar um enfermo, confortar uma família enlutada ou tomar um café para saber como você está se chama “cuidado pastoral”. É um cuidado lindo, espontâneo e vital para a saúde da igreja. O aconselhamento pode ser parte desse cuidado, mas ele é mais estruturado — geralmente com hora marcada, em um lugar reservado, focado em uma questão específica. E a grande notí...

Duas lentes para ler a Bíblia com mais clareza

Você já leu um versículo que conhece desde criança e, de repente, se perguntou: “Será que estou entendendo isso direito?” Ou talvez já tenha ouvido alguém tirar uma conclusão de um texto bíblico que te fez pensar: “Nossa, eu nunca vi isso aí... de onde essa pessoa tirou isso?”                   Nessa jornada de leitura da Palavra, que é um aprendizado constante para todos nós, eu percebi que existem dois extremos muito comuns que podem nos desviar do caminho. Já observei isso em mim e em outros: de um lado, a tendência de se apegar apenas ao “preto no branco” do texto. Do outro, o impulso de “viajar” em nossas próprias ideias sobre o que a passagem poderia significar, correndo o risco de colocar nossas palavras na boca de Deus. Tudo começou a mudar quando eu entendi a importância de usar duas “lentes” para a leitura. Duas palavrinhas que parecem técnicas, mas que são incrivelmente práticas: referência e inferência . Lente 1: A Referência (...