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The Chosen: como a nova representação de Jesus nas telas dialoga com os cristãos de hoje?

De tempos em tempos, surge na cultura contemporânea uma tentativa de traduzir o Cristo das Escrituras para linguagens que dialoguem com a sensibilidade do mundo atual. The Chosen, a série que narra a vida de Jesus pelos olhos daqueles que O encontraram, é, sem dúvidas, uma dessas tentativas — e, talvez, a mais bem-sucedida em termos de alcance, sensibilidade artística e impacto espiritual nos últimos anos.

Lançado inicialmente como um episódio piloto em 24 de dezembro de 2017, o projeto cresceu e ganhou corpo com o início oficial da primeira temporada em 2019. Criada, dirigida e coescrita por Dallas Jenkins, The Chosen é um projeto independente financiado por doações de espectadores, rompendo com os modelos tradicionais de distribuição. Atualmente, a série já alcançou sua quinta temporada e está disponível gratuitamente em seu próprio aplicativo oficial, além de poder ser acessada por meio de plataformas como Amazon Prime Video, Netflix, YouTube e Facebook. Em março de 2025, a série chegou aos cinemas com o lançamento do filme The Chosen: Last Supper – Part 1, que levou para a tela grande os episódios iniciais da nova temporada, oferecendo uma experiência imersiva da ceia e dos eventos finais da vida de Jesus.

O fato de uma série sobre Jesus alcançar milhões de pessoas, fora dos muros da Igreja, já diz muito sobre a sede que este mundo ainda tem do transcendente, do sentido, do encontro com Deus. E, como teólogo e cristão, não posso olhar para isso senão com interesse, gratidão e também, claro, com discernimento teológico.

Em um primeiro momento, é preciso dizer que The Chosen não é, nem pretende ser, um substituto da Escritura. A Palavra de Deus é norma e regra de fé, vida e doutrina. Ela não apenas contém, mas é a própria voz viva de Deus que salva, confronta e consola. Qualquer obra artística — por mais bem feita que seja — precisa ser recebida como aquilo que de fato é: uma mediação humana, limitada, falível, que busca apontar para a grandeza do Verbo encarnado.

Dito isso, há muito a ser celebrado na proposta de The Chosen. A série acerta ao humanizar os discípulos, ao mostrar suas contradições, suas dúvidas, seus medos e suas fragilidades. Na teologia da cruz, Lutero nos ensina que Deus se revela, não na glória dos palácios, mas na fraqueza, na humanidade, na cruz. Ver um Jesus que se aproxima, que toca, que sorri, que olha nos olhos, que abraça, não é diminuir Sua divindade, mas antes sim, reafirmar a Sua encarnação.

O Verbo se fez carne. Carne real. Carne que sente fome, que se cansa, que se entristece, que sorri. E é exatamente esse escândalo da encarnação que The Chosen consegue, de certa forma, capturar. Um Jesus que não flutua acima da vida, mas que pisa o chão da existência, que se suja da poeira da Galileia, que olha para pessoas comuns — como eu e você — e diz: “Vem e segue-me.”

Por outro lado, como todo recurso artístico, a série também corre o risco de ser interpretada como se fosse uma extensão das Escrituras. E aqui mora o cuidado necessário: Deus se dá a conhecer de maneira segura e suficiente por meio da Palavra e dos sacramentos. Por isso, qualquer narrativa que expanda o texto bíblico — ainda que com boas intenções — precisa ser recebida com discernimento, com uma Bíblia aberta no colo e com o coração atento à voz do Espírito que fala através das Escrituras, não através dos roteiros construídos a partir de uma perspectiva imagética.

Outro ponto que merece reflexão é o cuidado com uma possível substituição do Cristo das Escrituras pela figura de Jesus apresentada em uma representação cinematográfica. O Jesus da fé cristã não é um ator, não é uma imagem. É o Deus encarnado, crucificado e ressuscitado. Ele não cabe numa tela. E ainda que a série nos ofereça lampejos e percepções sensíveis desse Cristo, nada substitui o encontro real com Ele na Palavra pregada, no pão e no vinho consagrados e no batismo que nos enxerta no Reino de Deus.

Concluindo, The Chosen é, sim, uma oportunidade valiosa de aproximação, de diálogo com o imaginário contemporâneo. Que ela sirva como seta que aponta para a cruz e que quem assista, deseje mais — mais da Palavra, mais do Evangelho, mais de Cristo. Porque, no final das contas, a boa notícia continua sendo esta: o mesmo Jesus que olhou nos olhos de Pedro, de Mateus, de Maria Madalena, é o Jesus que hoje olha nos meus e nos teus olhos e diz: “Paz seja contigo.” E isso nenhuma série pode substituir.

Por Marlon Anezi

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