Vivemos em tempos curiosos, em que a tecnologia, a arte e o consumo se entrelaçam de formas que expõem a fragilidade da alma humana. O fenômeno dos bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos — é um desses espelhos contemporâneos. O termo "reborn" (renascido) surgiu nos EUA em duas vertentes: após a Segunda Guerra Mundial, quando bonecas antigas eram reformadas por falta de brinquedos, e nos anos 1990, quando artesãs passaram a transformar bonecos comuns em peças extremamente realistas, técnica chamada reborning. Em 2005, criou-se a International Reborn Doll Artists (IRDA) para profissionalizar a prática, e a internet acelerou sua difusão — em 2002, o primeiro reborn foi vendido pelo eBay, abrindo caminho para um mercado global.
No Brasil, a tendência explodiu nos anos 2000 e ganhou novo impulso durante a pandemia, com influenciadores postando role plays (encenações de cuidado) no TikTok e Instagram, acumulando milhares de seguidores. Celebridades como o padre Fábio de Melo e a apresentadora Nicole Bahls também aderiram, dando visibilidade midiática a um fenômeno que já apareceu até em filmes como Uma Família Feliz.
Originalmente vistas como brinquedos, essas bonecas passaram a ser tratadas como objetos de afeto a partir dos anos 1990, quando o realismo das técnicas de reborning atraiu colecionadoras adultas. Nos anos 2000, com o comércio online, consolidou-se um mercado de peças artesanais caras (chegando a custar R$ 15 mil), distanciando-as definitivamente do universo infantil. Hoje, são usadas principalmente por adultos que estabelecem rotinas de cuidado detalhadas: levam-nas em carrinhos, trocam fraldas, simulam alimentação com mamadeiras e até encenam "nascimentos" rompendo cápsulas que imitam a bolsa amniótica.
Para muitos, os reborns funcionam como terapia — uma forma de lidar com luto, infertilidade ou solidão. Mas o fenômeno também gerou polêmicas: em 2025, um casal brasileiro disputou judicialmente a "guarda" de um reborn, incluindo os direitos sobre seu perfil no Instagram (que gerava renda com publicidade). No mesmo ano, propôs-se no Congresso a proibição de atendimentos médicos simulados com as bonecas, e líderes religiosos, como o padre Chrystian Shankar, recusaram-se a batizá-las, alertando para riscos de substituição de vínculos reais.
A fé cristã nos convida a olhar para esse fenômeno com honestidade e compaixão. Lutero nos lembra que o ser humano, desde a queda, vive curvado sobre si mesmo (homo incurvatus in se), buscando preencher vazios com substitutos — sejam posses, relações ou, neste caso, bonecos que materializam o afeto. Não se trata de condenar quem os possui — o simbólico pode ser terapêutico. Mas há um alerta pastoral: todo anseio do coração, quando não repousa em Deus, pode virar idolatria. Como diz Agostinho: "Fizeste-nos para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti."
O Evangelho nos lembra que só em Cristo encontramos o amor que não falha. O desafio é perguntar, com honestidade: "O que estou tentando preencher?" — e abrir espaço para que a graça de Deus ocupe o centro do nosso ser. Afinal, quando a filiação divina nos alcança, ela cura vazios que nenhum boneco — por mais realista que seja — poderá preencher.
Por Marlon Anezi
Comentários
Postar um comentário