Como cristãos, somos chamados a viver nossa fé de maneira responsável e coerente com a Palavra de Deus. As eleições se constituem enquanto um momento importante da nossa vida em sociedade e uma doutrina que pode nos ajudar muito nesse processo é a doutrina luterana dos dois reinos. De acordo com Lutero, Deus governa o mundo de duas maneiras distintas, mas complementares: o governo espiritual e o governo temporal.
O governo espiritual, também chamado de reino da graça, é o governo de Deus sobre o coração e a vida espiritual das pessoas, realizado por meio da pregação do evangelho e dos sacramentos. Já o governo temporal, ou reino da lei, representa o governo de Deus sobre a sociedade e o mundo, utilizando a autoridade e as leis para manter a ordem, a justiça e a paz. Nesse reino, Deus usa líderes e instituições civis para promover o bem-estar comum, mesmo que esses governantes não sejam necessariamente cristãos.
Segundo Lutero, “Deus estabeleceu dois reinos, ambos criação de Deus, e ambos sobre o governo de Deus. Mas um está sob a lei (Estado – poder civil) e o outro sob o evangelho (Igreja)”. Ele explica que a Igreja e o Estado possuem responsabilidades distintas: “Que não cuidem senão das questões de fé e bons costumes, deixando para os juízes seculares aquelas que tangem a dinheiro, bens materiais e corpo ou honra. Por isso o poder secular não deve permitir a excomunhão e processos em casos que não se referem à fé ou vida correta. O poder espiritual deve reger os bens espirituais, tal como o ensina a razão. Bens espirituais, entretanto, não são dinheiro nem coisas materiais, mas fé e boas obras.” Com isso, Lutero nos mostra que o reino temporal se ocupa das questões materiais e sociais, enquanto o reino espiritual se concentra na fé e na prática do evangelho.
Mas como essa doutrina pode nos ajudar a tomar decisões nas urnas? Primeiramente, ela ensina que a Igreja e o Estado têm papéis distintos: a Igreja não deve controlar o Estado, e o Estado não deve governar a fé. Assim, ao votar, não estamos escolhendo um “salvador político” ou esperando que o governo imponha valores religiosos. O governo civil deve promover justiça e bem comum, enquanto a Igreja se dedica à administração dos sacramentos e à pregação do evangelho.
Embora nossa fé pertença ao reino espiritual, somos chamados a agir de maneira responsável no reino temporal. Portanto, devemos participar da vida política, votar conscientemente e buscar o bem da sociedade, escolhendo líderes que promovam justiça e paz para todos. Devemos avaliar as propostas dos candidatos à luz do bem comum, perguntando se suas políticas beneficiarão os mais necessitados e vulneráveis e se governarão com integridade.
A doutrina dos dois reinos também nos lembra que nenhum líder político pode resolver todos os problemas de uma determinada localidade ou trazer redenção ao ser humano. Apenas Cristo pode trazer a verdadeira salvação e paz eterna. Por isso, evitamos depositar nossa esperança final na política. Enquanto peregrinos deste mundo somos chamados a ter participação ativa na sociedade da qual fazemos parte. Por outro lado, enquanto cidadãos do Reino dos céus, colocamos a nossa esperança última em uma outra vida preparada por Deus para cada um de nós. Votamos e trabalhamos pelo bem comum, mas sabemos que nossa verdadeira cidadania está no Reino de Deus.
Portanto, a doutrina dos dois reinos nos oferece uma perspectiva clara e equilibrada para tomar decisões eleitorais. Não buscamos transformar o governo civil em um reino teocrático, nem nos alienamos da política. Somos chamados a ser responsáveis, buscando a justiça e a paz, sabendo que, em última instância, pertencemos ao Reino de Cristo. Quando formos às urnas, que possamos escolher com sabedoria, lembrando que a política é importante, mas temporária, e que o governo perfeito virá com o retorno de Cristo. Que Deus nos dê discernimento e sabedoria nesse processo. Amém!
Referência:
LUTERO, Martinho. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, 1520. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. V. 2. Trad. Ilson Kayser. São Leopoldo: Sinodal, 1995. p. 277-340.
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