Começo este texto buscando responder à pergunta: o que é ter uma espiritualidade cristã autossuficiente? Considero que uma espiritualidade cristã autossuficiente parte da ideia de que pode se sustentar e existir sem o auxílio de Cristo e de Sua graça. Muitos de nós compreendemos que fomos salvos pela graça, mas pensamos que, após sermos salvos, não precisamos mais da graça; passamos a viver a partir de nossa ética cristã pessoal, como se ela nos bastasse. Mas a verdade é que a natureza humana tende a buscar o caminho do orgulho e da autossuficiência, e, cá entre nós, é mais fácil. Depender da graça de Cristo envolve reconhecer o pecado presente em nossas vidas, o pecado que continua presente e continuará até o retorno de Jesus. Exige de cada um de nós uma vulnerabilidade que, por vezes, não temos, uma disposição em reconhecer o fato de que, apesar de já termos sido salvos, não estamos prontos.
A expectativa lançada sobre nós é cada vez mais alta. Fazer parte do povo de Deus por anos coloca em nossas costas uma responsabilidade, como se fôssemos moralmente melhores do que outros cristãos que estão iniciando a caminhada. Porém, a verdade é que, todo dia, precisamos “nascer da água e do Espírito”, como Jesus ensinou a Nicodemos (Jo 3). Nascer da água e do Espírito não é uma atitude que se toma uma vez na vida; o batismo acontece diariamente. Todos os dias somos convidados pelo Espírito Santo a viver o batismo e, assim, renascer para uma nova vida. É interessante pensar no quanto isso difere da prepotência que muitos cristãos carregam, pois pensam que o amor de Deus, a misericórdia e a graça eram conceitos empregados apenas no início da vida cristã e que já não encontram sentido após certo tempo de caminhada com Jesus.
Mal sabem que continuamos dependentes da graça tanto quanto antes e que a verdadeira vida não reside nas obras que aprendemos a realizar ao longo da jornada com Cristo, mas sim na misericórdia de Deus, que continua a perdoar nossos pecados diariamente e que nos dá a oportunidade de recomeçar a qualquer momento. A força do evangelho, o poder do evangelho, não está no conjunto de princípios que devem ser praticados e vividos, mas sim no amor de Deus, que verifica a nossa imperfeição e busca, através de Cristo, manter Seu elo conosco. A única dádiva que nos sustenta na fé em Cristo é o perdão doado por Ele próprio, não são as nossas obras ou qualquer lei praticada por nós. Se dependêssemos de nós mesmos e de nossos atos, sem exceção, estaríamos todos perdidos. Aí reside o perigo de uma espiritualidade cristã autossuficiente: ela está construída na ideia de que nosso comportamento sustenta a nossa salvação e nos mantém como parte do povo de Deus, enquanto o amor de Deus torna-se apenas uma necessidade daqueles que estão iniciando na vida cristã ou ainda daqueles mais fracos, impenitentes, que ainda não conseguem se conter e se manter na linha.
A espiritualidade cristã precisa ser inteiramente dependente de Cristo e de Sua obra redentora, pois se apoia no perdão d’Ele para existir. Não há outra forma de viver a espiritualidade cristã que não pela graça. Embora a ideia de dependência da graça cause tédio aos cristãos mais moralistas, é ela o poder de Deus que nos reconcilia com Cristo e nos conserva reconciliados com Ele. Tudo o que vem depois — os princípios e a conduta cristã — é vivido por nós como consequência dessa graça que opera em nós e nos capacita a viver os Seus ensinos. Mesmo em nossas escolhas e atitudes diárias, não estamos sozinhos; é Ele quem está junto conosco, nos apoiando com Sua graça e com a chance de recomeço sempre disponível e presente, pois sabe que, mesmo que queiramos permanecer íntegros por nossa própria força, falhamos constantemente e precisamos recomeçar.
Por Marlon Anezi
Comentários
Postar um comentário