Irmãos, cada um deve permanecer diante de Deus na condição em que foi chamado. 1 Co 7.24
No capítulo 7 de Primeira Coríntios, o apóstolo Paulo aconselha a permanecermos diante de Deus na condição em que fomos chamados por Ele. Isso inclui muitas diferentes situações citadas pelo apóstolo, como por exemplo: casamento, virgindade, escravidão, circuncisão, etc. Para ele, quem está casado deve permanecer casado, quem é circuncidado também, e assim por diante. Cada uma destas condições, porém, carrega suas particularidades.
Quando o assunto é a escravidão, Paulo aconselha que, apesar de procurar não se incomodar pelo fato de serem escravos, os escravos que pertencem a Cristo procurem se libertar. Quando o assunto é virgindade, o conselho carrega a compreensão de que é melhor se casar do que ser virgem e viver cheio de impulsos sexuais. Ou seja, nestes dois aspectos não se trabalha a ideia de permanência na mesma condição.
Contudo, Paulo não impõe a ideia de permanência na mesma condição à Igreja de Corinto como mandamento. Como ele mesmo afirma, ele apenas pensa que quem assim procede faz melhor, ou seja, aquele que permanece na condição em que foi chamado faz melhor. Somos desafiados a permanecer e a dar continuidade na vida que vivíamos antes de sermos chamados por Deus, acredito que este é o grande ponto a ser destacado por Paulo.
Não cabe abandonar o cônjuge porque este não é cristão, após ter sido convertido à fé cristã, por exemplo. Somos chamados a fazer o exercício de não nos desvencilharmos da realidade que nos circundava antes de nossa conversão. Podemos aqui problematizar cada um dos conselhos de Paulo: como assim “não dar bola para o fato de ser escravo?” ou até mesmo “como assim, é melhor permanecer sem um companheiro ou companheira? É possível pôr isso em prática em pleno século XXI?” São questões que individualmente poderiam ser pensadas com muito cuidado, pois muitos ao longo da história da Igreja já procuraram viver desta forma, mas não se deram tão bem quanto Paulo, que se disse permanecer uma pessoa confiável mesmo se mantendo solteiro.
Além de causarem destruição para si próprios, vários líderes espirituais ao longo da história causaram destruição para outros, promovendo escândalos dos mais diversos tipos, histórias que causariam horror e que talvez colocariam em xeque a decisão de viver uma vida de eterna solteirice. Com isso, invalidamos o conselho de Paulo? Absolutamente não. A questão é que a Igreja Romana, ao instituir o celibato para seus líderes, deu prioridade apenas à parte do conselho que fala aos solteiros “é melhor que permaneçam como eu”, enquanto deveriam considerar o “mas, se não conseguem controlar-se, devem casar-se, pois é melhor casar-se do que ficar ardendo de desejo” (1 Coríntios 7.9).
E aí retornamos à pergunta: você conhece alguém que, em plena juventude, não chegará a esta condição de desejar outra pessoa? Eu posso dizer que não conheço. Paulo, contudo, foi sincero ao afirmar que sua decisão estava tomada, ele era um celibatário, que bom para ele, mas a maioria das pessoas não se encontra nesta mesma situação.
E aqui cabe dizer ainda que o homem de antigamente não era diferente do homem de hoje (no que diz respeito aos desejos sexuais). A carnalidade, o pecado, estava presente no ser humano assim como é hoje. Claro, hoje as manifestações desta carnalidade estão mais abertas e menos reprimidas pelos padrões morais. Contudo, o ser humano é o mesmo.
O que dá então a liberdade para que Paulo dê tais conselhos naquele período e hoje não se tenha coragem de incentivar os votos de castidade? Primeiramente, hoje nos conhecemos mais do que naquela época as pessoas se conheciam, ao menos temos um maior número de definições e reflexões sobre o ser humano do que no século I, isso é inegável. E o segundo ponto, é que hoje temos mais facilidade em aceitar o fato de que possuímos desejos e precisamos canalizá-los para a satisfação (dentro de um contexto saudável e apropriado), do contrário, estaremos reprimindo esses desejos e causando problemas para nós mesmos, assim como para outras pessoas.
As crianças que foram abusadas ao longo da história e aquelas que ainda o são por padres celibatários sofreram e por certo foram vítimas de terríveis traumas devido à forma como foram tratadas por aqueles que buscaram, de alguma forma, fazer “o melhor”, sob um ponto de vista que desconsidera o “porém” dado por Paulo. A maneira como interpretou-se o “melhor” de Paulo (no caso o não casar-se) ocasionou ainda um flerte do cristianismo antigo com as doutrinas gnósticas, que compreendiam o corpo como mau e o espírito como bom, um dualismo que causa confusão nas pessoas até hoje.
Não é saudável considerar as coisas do corpo como más. Tudo, na verdade, que está em desequilíbrio pode ser mau. Se o corpo faz com que as coisas do espírito sejam negligenciadas ou anuladas na vida de alguém, sim, pode-se dizer que o corpo está representando o mal na vida daquela pessoa. Não que ele seja mau por essência, mas a forma como tem tomado a atenção da pessoa e seus cuidados excessivos pode estar sendo um empecilho para a vida no Espírito, e o cultivar do espírito.
Há pessoas que de fato pouco se importam com seu universo interior, dedicando-se apenas ao exterior. Neste cenário, sim, o corpo é mau, mas não porque ele é mau em si próprio, mas sim porque o indivíduo não soube equilibrar-se a ponto de compreender que deve colocar cada coisa no seu devido lugar, não dando atenção apenas ao corpo e não reconhecendo que em si há um espírito.
Da mesma forma, Paulo diz que “o homem casado preocupa-se com as coisas deste mundo, em como agradar sua mulher, e está dividido” (versículos 33 e 34). Ele refere o mesmo à mulher, que deseja agradar ao marido, enquanto o homem e a mulher solteiros dedicam-se às coisas de Deus. Será que só é possível dedicar-se a Deus quando se é solteiro? São compreensões fechadas que acabam por colocar a mente cristã em dualismos não saudáveis.
Jesus ensina que quando você está fazendo algo para o seu próximo, está fazendo como para Ele. Portanto, servir ao marido ou esposa e servir ao Senhor não são atividades opostas e inimigas, elas estão mais juntas do que pensamos. A questão é que se encontre um equilíbrio. Não significa nem que só viveremos para servir a Deus no contexto eclesiástico, nem que só serviremos em nossa casa, mas que consigamos dedicar-nos um pouco para cada, sem exageros de nenhum dos lados.
Estou indo contra Paulo neste ponto? Não, estou reformulando seu conselho. Como ele diz: “o homem casado [...] está dividido”. E aqui valem duas reflexões: (1) Quem não está dividido de uma forma ou de outra nesta vida? Todos buscamos o sustento e ao mesmo tempo preocupamo-nos com o imaterial, com o que alimenta a alma. A divisão não é particularidade dos casados. E se não é neste sentido, estamos divididos em outros aspectos de nossas vidas. (2) Estar dividido é necessariamente ruim? Não, é um sinal de que estamos tentando equilibrar as coisas e dar conta das demandas necessárias em nossas vidas. Algumas abordagens da psicologia compreendem que somos seres biopsicossocioespirituais, ou seja, abarcamos em nós muita coisa. Em meio a todas as fases e áreas de nossas vidas, devemos ter noção de que Deus continua conosco. Sim, Ele está conosco quando aramos a terra ou jantamos em família, quando vamos a um velório ou a uma festa. As circunstâncias da vida secular não nos separam do Deus onipresente. Ele está presente em tudo na vida do cristão.
E é sob essa compreensão que devemos também entender o conselho de Paulo para que os cristãos permaneçam na condição em que foram chamados por Deus. Pois, caso o cristão do seu tempo pensasse que, pelo fato de ser escravo, Deus não estivesse com ele, estaria relativizando a presença de Deus em sua vida. Do mesmo modo, aquela pessoa que se circuncidou, aquela que se separou, a que ficou viúva, a que se casou com alguém descrente, todas essas pessoas não estão em pecado, nem estão em situação desfavorável diante de Deus, elas foram chamadas das trevas para uma nova vida em Deus, independentemente das circunstâncias que as circundam e dos desafios que enfrentam. Nem todos esses desafios serão solucionados, muitos farão parte da vida e serão enfrentados com a ajuda de Deus. Ao permanecermos em nossas circunstâncias, estamos declarando, pela fé, que Deus não nos abandona em meio aos problemas. Ele segue conosco, pois nada nos separa do Seu amor.
Por Marlon Anezi
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