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O amor ao próximo e as desavenças pessoais

Veja bem, vamos supor que você se sinta mal por causa de alguém com quem tem alguma diferença pessoal e vive meio distante dessa pessoa. Pelo fato de ser cristão, você pensa: será que estou vivendo o amor ao próximo da forma correta, mesmo tendo uma desavença em relação àquela pessoa?

Bom, existem casos e casos. O ideal é que não estejamos brigados com ninguém, porém sempre vão existir pessoas com as quais teremos mais ou menos afinidade. Pessoas terão mais proximidade conosco e outras não. Tudo isso acontece muito naturalmente, ninguém tem obrigação de se dar bem igualmente com todo mundo, todos possuem seus jeitos, gostos pessoais, sua própria cosmovisão e isso ajuda a nos aproximarmos de uns bem como a nos distanciarmos de outros. Quando Jesus fala em amor ao próximo, não quer nos forçar a ser o que não somos na nossa relação com o outro, isso seria fingimento, não amor.

Mas o caso ao qual quero trabalhar aqui é o de um distanciamento, devido a alguma dificuldade de convivência próxima. Esse caso é recorrente em muitos lugares com pessoas da família, pessoas que não se dão bem no trabalho, pessoas que não se sentem bem em um ambiente com outros que lhes soam distintos.

O teólogo Warth, no seu livro “A ética de cada dia”, diferencia pessoa e função.

pessoa carrega os atributos de Deus consigo, foi criada à Sua imagem e semelhança e é valiosa, pois Jesus morreu por ela. Esse valor não depende do fato de a pessoa ter aceitado pela fé o perdão oferecido por Cristo ou não tê-lo aceitado.

função, no que lhe concerne, refere-se ao lugar que a pessoa ocupa no mundo sob uma determinada perspectiva. Por exemplo: em relação a mim, uma determinada pessoa pode ter a função de amiga, outra pode ter a função de esposa, outra de mãe e assim por diante.

As distintas funções diferenciam as pessoas em nossa dinâmica da vida. Para fazermos uma boa aplicação ética das diversas situações da vida, devemos ser analisados sob estas duas perspectivas: pessoa e função.

Enquanto as pessoas têm cada uma o mesmo valor, as funções tornam as pessoas diferentes, pois enquanto função cada uma representa algo diferente.

“Quando há funções que atraem, o lugar será próximo; no casamento, até será íntimo. Quando há funções que afastam, o lugar será distante, como ocorre com o inimigo.” (Warth)

Além de compreendermos estas nuances, para analisar este caso, é preciso compreender os diferentes amores: ágape, philia e eros.

Não é minha pretensão dar uma descrição longa a respeito dos três tipos (C.S. Lewis acrescentaria mais um inclusive, que se refere ao amor caridade), mas sim delinear algo resumidamente.

-   Ágape refere-se ao amor incondicional, o amor de Deus que ama a todos sem distinção.

-   Philia é a amizade, dedicação à pessoa.

-   Eros é o amor presente na intimidade, na sexualidade.

Quando falamos em pessoa, conforme a definição de seu valor inestimável dada anteriormente, então possuímos o dever de amá-la com este amor ágape, no sentido de auxiliar na preservação de sua vida, respeitá-la como criatura de Deus e não usurpar os seus direitos. Quando falamos em função, então aplicamos o amor ágapephilia e eros, dependendo da função que aquela pessoa desempenha em nossas vidas.

Vou exemplificar para ficar mais claro.

Quando se tem amizade com alguém devido à sua afinidade com aquela pessoa, está se cultivando o amor ágape e philia. Com o cônjuge, além do amor ágape e philia, se vivencia o amor eros. E em relação a uma pessoa que vive distante por conta de diferenças pessoais? Como não há afinidade e boa convivência, somente o amor ágape precisa ser cultivado. É esse o amor ao próximo que Jesus quer, o amor ágape, que respeita e ama a pessoa, independentemente de sua função.

Cristo diz para amar os inimigos, não significa que para isso devemos trazê-los para dentro de nossa casa para morar conosco, ou contarmos nossos segredos a eles abrindo nossas vidas para estas pessoas, isso seria praticar o amor philia em relação a eles.

Viver o amor ágape é o mesmo que, de longe e dentro dos limites necessários, ter respeito por aquela pessoa como criatura de Deus, não prejudicando-a de nenhuma forma e até mesmo ajudando-a, caso precise, pois como disse Paulo, isso amontoa brasas vivas sobre a cabeça daquela pessoa (Rm 12.2). O amor ao próximo é baseado no amor ágape e não deve ser confundido com a amizade ou o amor íntimo. Se surgir a amizade, ótimo, mas o dever para com o próximo está em enxergá-lo como criatura de Deus, considerando que, apesar disso, pode não se entender bem conosco, e não há necessidade de que todo cristão se dê bem com todo mundo.

O próprio Jesus, apesar de amar ao mundo incondicionalmente, teve suas discordâncias com os fariseus, Ele não se moldou aos fariseus para mostrar que os amava, porque Seu amor não está baseado na amizade, mas em um amor diferente, mais profundo. Um amor que por vezes não compreendemos, que corrige quando necessário, que quer a todo custo salvar. Ele é o Deus que “deseja que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao pleno conhecimento da verdade.” (1Tm 2.4) Ele morreu por aqueles fariseus também, Ele veio à terra por eles também, Ele os criou e os amava.

Vale aqui ressaltar que nossa capacidade de ser humilde e procurar o quanto for possível a paz com todos não deve ser esquecida, (Hb 12.14) muito menos anulada por não termos a obrigação de confraternizarmos e compartilharmos a vida com aqueles que possuem dificuldades de relacionamento conosco. Devemos permanecer atuando como “máscaras de Deus” no mundo, oferecendo e manifestando o amor ágape.

Por Marlon Anezi

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